Mensagem

"Não permita que aquilo que você chama de amor se transforme em obsessão.
Amor é liberdade.
Amor é vida.
Jamais prisão ou limitação."

Militão Pacheco

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A disciplina das pequenas coisas.​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​

Glória não conseguia entender se realmente poderia ajudar na cantina da Casa Espírita, pois lhe parecia tudo muito diferente.

Ela acabara de chegar de outro centro espírita e lá, com muito carinho, dedicou-se por muitos anos a cuidar da cantina. E só saiu e parou de cuidar de lá depois que a médium fundadora do centro espírita veio a falecer, deixando uma lacuna, um espaço vazio no coração de todos, de modo que não havia quem conseguisse manter os trabalhos com a firmeza e suavidade que ela o fazia.

Infelizmente o trabalho foi minguando e o centro espírita acabou fechando as portas. então, Glória saiu em busca de trabalho, não só o mediúnico, mas também o "braçal" de que ela gosta tanto. Lembrou-se da Casa Espírita e do "seu" Geraldo, que chegou a visitar o centro espírita algumas vezes, nas quais sempre fazia questão de deixa claro que as portas da Casa Espírita estavam sempre abertas a todos, particularmente aos companheiros de Doutrina do centro espírita de quem ele gostava tanto.

- Tenho convicção de que todos da Casa Espírita guardam muitas simpatias e sintonias por todos do centro espírita e todos vocês serão sempre bem acolhidos lá, assim como somos bem assistidos aqui!

As palavras do "seu" Geraldo vinham à sua mente com freqüência e ela não resistiu: assim que as portas se fecharam, ela imediatamente lembrou e compareceu a uma reunião aberta da Casa Espírita e aguardou a oportunidade de conversar com ele.

- Olá, "seu" Geraldo! Como vai o senhor, tudo bem?

- Felizmente, sim, Glória. Que bons ventos a trazem à Casa Espírita?

- Bom, o senhor sabe que a nossa companheira faleceu e que deste episódio para cá o centro espírita foi minguando até fechar, não sabe?

- É, eu tenho acompanhado as notícias através das pessoas que você conhece e que eventualmente vêm até aqui para tomar um passe ou para assistir uma palestra e sei relativamente bem o que aconteceu. Na verdade, eu sabia "de algum modo" que você viria aqui. Até acho que você deve ter pensado muito para vir e se retardou um pouco, não é mesmo?

- É verdade, "seu" Geraldo. Eu fiquei meio perdida por um tempo e sem saber o que fazer...

- Mas então você não havia levado a sério meus convites no passado, Glória?

- Havia sim! Até me passou pela cabeça que o senhor já deveria estar sabendo o que iria acontecer lá...

- Não, as coisas não eram claras assim, para mim, Glória! Eu só dizia o que sentia intuitivamente e, como as minhas afinidades por aquela casa de Deus sempre foram profundas e acreditando que todos daqui nutrem a mesma simpatia que eu por todos vocês, nada mais natural que expandir o convite a todos que eram de lá para que ficassem à vontade aqui conosco, como, aliás, está a acontecer agora, não é mesmo? Tantas pessoas já têm vindo! Apesar da tristeza pelo afastamento de nossa amiga, tenho certeza de que ela já está aqui conosco, reforçando as equipes invisíveis com sua boa vontade e com aquela disciplina que lhe era tão característica. Eu sinto muitas vezes a sua presença entre nós e isso muito me alegra, por podermos ser úteis de alguma maneira...

- Então, "seu" Geraldo, será que tem um espacinho para eu poder trabalhar, seja no setor que for?

- Minha irmã, as portas estão escancaradas, no bom sentido, para todos vocês. Já temos alguns companheiros de lá ocupando algumas posições conosco. Curiosamente, com relação ao mesmo setor no qual você dedicou tanto esforço no centro espírita, tivemos um afastamento, não por falecimento, de uma amiga que mudou de mala e cuia para o nordeste, acompanhando o marido, há três dias - parece que você foi bem intuída, não é mesmo? E você poderia nos ajudar com sua larga experiência no lugar que ela acabou de deixar. Que tal?

- Na cantina?

- Isso mesmo, Glória! E aí? Aceita?

- Bem, se eu não for estorvar nenhuma pessoa, claro que aceito! Com muita alegria! Mas, e os trabalhos mediúnicos?

- Vamos conversar com os guias espirituais a respeito disso, no dia do atendimento mediúnico, por favor. Aí você terá melhores diretrizes para esse trabalho que é tão importante para todos, certo?

- Certo, "seu" Geraldo. O atendimento continua às sextas-feiras?

- Sim, Glória.

Alguns dias depois, Glória já estava se entrosando com o pessoal da Cantina, que estava um pouco perdido com o recente afastamento da companheira Ilce. Uma jovem senhora, conhecida por Dida, fazia as vezes de Ilce, mas não era muito ligada às artes culinárias e nem mesmo tinha noções de controle de estoque, de alimentos e outras coisas que fazem parte da estrutura de uma cozinha ou cantina.

Felizmente Glória sabia dessas particularidade, mas sabendo que a alma humana é melindrosa, não tinha a intenção de colocar tudo de um momento para outro. Sabia que era melhor fazer tudo aos poucos, sem chocar e sem impor. Assim evitaria o máximo possível aquelas situações embaraçosas que geralmente acontecem quando um funcionário novo chega a um determinado setor.

- Glória, que bom que você pode nos ajudar! Às vezes me sinto totalmente perdida no meio dessas coisa, sabe? Cá entre nós, acho que não levo muito jeito prá essa coisa de cozinha! - Dida sorriu ao falar isso para Glória.

- Ah, Dida, tenho certeza de que você está fazendo de tudo prá que o serviço fique "redondinho"!

- A gente se esforça, amiga, mas sabe como é; nada sai exatamente como a gente quer.

- Olha, pelo que estou vendo, tem poucas coisas para deixar tudo mais acertadinho...

Muitos detalhes foram revistos pelas duas, que, enquanto reviam tudo foram tendo algumas surpresas com as questões do material de estoque. Havia algumas discrepâncias no estoque e, pelo que Glória podia perceber, algo estava estranho naquilo tudo. Ambas acabaram por se aprofundar nas questões em foco e entenderam que alguém estava desviando alimentos e produtos de higiene utilizados para preparar e fornecer os salgadinhos, os sucos e os doces da cantina.

Ainda não tinham como afirmar quem seria a pessoa responsável por esse verdadeiro desfalque, que beirava, em um ano e pouco algo em torno mais de dois mil reais. Mas tudo apontava para um reduzido grupo de pessoas que tinham acesso livre à Casa e ao estoque.

- Mas, meu Deus! Como apontar o dedo para alguém? Disse Dida, com as sombrancelhas franzidas? - Como alguém tem coragem de fazer isso em uma casa espírita, meu Senhor?

- Ah, Dida! Todos temos imperfeições! Todos! Sem exceção. Cada um de nós tem suas tendências, seus vícios, suas dificuldades... é assim mesmo!

- Como "assim mesmo", Glória? Não pode, pelo amor de Deus! Como ter coragem de desviar recursos de um posto de assistência a necessitados? De um lugar onde a gente só recebe ajuda? Não entra em minha cabeça, de jeito nenhum! É o cúmulo!

- Calma, minha amiga! Calma! Vamos conversar com o "seu" Geraldo a respeito, para ver o que ele nos diz e como precisamos agir, tá bom? Mas olha, vai com calma, não se exalte tanto, pois isso irá fazer mal a você mesma, viu?

As duas foram procurar "seu" Geraldo e explicaram tudo em detalhes para ele, na primeira chance que tiveram, no final dos trabalhos daquele mesmo dia. Com muita serenidade ele disse que não importava quem estivesse fazendo aquilo, mas que se tomasse providências para inibir esse tipo de situação dali em diante.

- Mas, "seu" Geraldo, e o prejuízo que já foi provocado, como é que fica? - Dida estava indignada e ainda sentindo-se meio incapaz de ter percebido o rombo antes de Glória chegar - ela efetivamente precisava aprender muito e, pelo jeito, a nova amiga sabia conduzir a contabilidade de uma cantina. Não se tratava só de fazer as coisas para expor e para os freqüentadores consumirem. Tratava-se, também, de cuidar de toda a retaguarda, que incluía o estoque de alimentos e materiais de higiene. "Como fui ingênua" - ela repetia para si mesmo, mentalmente, com freqüência.

- O que já aconteceu não há como reverter. Não há, também como apontar para alguém ou acusar a esmo, sem provas contundentes. Seria o caos na Casa. E desnecessário. Nada acrescentaria, só haveria prejuízos éticos, sem qualquer vantagem para os trabalhos. Mesmo que tivéssemos provas, precisaríamos agir com uma cautela extrema, para não desequililbrar o andamento de todos os trabalhos da Casa. Não podemos esquecer de que aqui somos todos de alguma forma doentes. Não sabemos se nós não seríamos os ladrões nas mesmas circunstâncias. Ainda assim, é bom lembrar que talvez estejamos na mesma situação, se porventura roubarmos de quem quer que seja a paz, o sossego, a tranqüilidade, a rotina, enfim.

- O que devemos fazer, então? Disse Glória, em tom conciliador.

- Corrigir o sistema. Fazer com que as rotinas sejam mais rígidas. Colocar cadeados nos armários, nas geladeiras, fazer relatórios rigorosos do que entra e do que sai, enfim, coordenar esforços para que não exista facilidades para quaiquer equívocos.

- Mas colocar cadeados, "seu" Geraldo? Não é uma atitude "estranha"? - disse Dida, confusa.

- Nada disso: estranho é não educar as pessoas, é não mostrar que há limites, é não demonstrar que algo de diferente foi percebido no andamento das atividades, enfim, é não educar. Colocar o cadeado é dar demonstração de limite educativo.

- Taí, não havia pensado nisso! Mas, o que as pessoas irão dizer?

- Dirão o que quiserem dizer. Não há como controlar essas coisas, sabe? Mas há como controlar certos desvios que precisam ser controlados. Como nesse caso: se alguém está desviando algo, que a consciência desse alguém o responsabilize, não nós. Não temos o direito de agir levianamente.

Temos de corrigir sem apontar culpados, sem apontar alguém quem nem mesmo temos certeza de quem venha a ser. A Espiritualidade certamente acompanha esses erros com compaixão, como tem compaixão por nós em nossas mazelas. Então, seguindo o bom exemplo dos Amigos mais experientes, precisamos tentar seguir esse caminho.

Tudo acertado entre eles, passaram a tomar as providências devidas ao caso. Cadeado nas geladeiras, cadeado nos armários, livros para relatórios, exigências de notas fiscais de compras, perguntaram ao "seu" Geraldo quem poderia ser responsável pelo estoque e ele sugeriu dois rapazes que fazem parte da Mocidade Espírita e que, no momento, não estão com nenhuma responsabilidade mais exigente, podendo ter algum tempo para colaborar no trabalho. A idéia pareceu a Dida bem original, pois os dois não faziam parte do trabalho da cantina e, sendo "estranhos", não teriam contato com ninguém, evitando qualquer favorecimento aparente.

Evidente que falatórios começaram a surgir aqui e ali, e, eventualmente, alguém já sensibilizado com outra situação estaria sujeito a exteriorizar opiniões parciais que não necessariamente representariam a realidade dos fatos e das necessidades da Casa Espírita. Nilda, por exemplo, não perdeu tempo:

- Ah, só faltava essa! Como, colocar cadeados em armários e geladeiras? Absurdo! Daqui a pouco viremos para uma prisão! É o fim da picada, mesmo! Eu falo: o Geraldo está realmente obsediado, subjugado e fica dando ouvidos a quem não deve! É uma pena que as coisas aqui estejam andando assim! Por isso minha decisão é acertadíssima! Vou sair daqui. Vou para outro centro espírita.
Esse já deu o que tinha de dar...

- Nilda, por que essa reação? Nada de anormal em controlar as coisas... - era Jandira, tentando apaziguar a conversação agressiva de Nilda.

- Normal para você, que faz parte da curriola!

- Calma, Nilda, não precisa ser agressiva...

- Falar a verdade é ser agressiva? Desde quando?

- Nilda, deixa prá lá! Não queria lhe ofender. Perdão, vou me retirar.

- Isso, covarde! Vai lá bajular o Geraldinho, vai! É só prá isso que vocês servem mesmo!

Jandira saiu envergonhada e foi num cantinho da Casa Espírita para pedir aos Bons Amigos Espirituais pela amiga que passava por um momento de dificuldade. Fez uma prece sentida, mas as lágrimas escorriam pelo rosto. Não teve jeito de não se denunciar.

- Nossa, Jandira! O que aconteceu?

- Nada não, Glória! Nada não! É só preocupação por uma amiga em aflição. Nada demais, não se preocupe. - Jandira sabia que não deveria fomentar ainda mais dificuldades. Se dissesse algo para Glória o círculo se fecharia às custas dela e ela tudo o que ela não queria. Nada disso!

- Posso ajudar, Jandira?

- Pode, fique aqui comigo e vamos vibrar por uma amiga em sofrimento!

- E qual o nome dela?

- Prefiro manter em sigilo, se você não se importa. Afinal, a discrição nessas horas protege as pessoas bem-quistas, não é verdade?

- Verdade. Você tem razão.

As duas seguiram em prece, por alguns minutos, silenciosamente. Depois de algum tempo, o coração de Jandira já havia ficado aliviado e parecia que tudo estava em ordem. Parecia, pois, ao passar pelas duas, Nilda não fez o mínimo esforço para se conter:

- Ah, eu sabia! Jandirinha, boazinha, fazendo fofoquinha! Não ia dar outra, né Jandira? Saiu de lá e veio contar tudo para essa criatura extra-terrestre, estranha no ninho! E aí, falou bastante de mim? Desceu a lenha? Está satisfeita, agora?

Estranhando tudo aquilo, mas escolada com a experiência no centro espírita, Glória não teve dúvidas, levantou-se e se retirou, apertando a mão de Jandira e lhe dizendo suavemente: - Já entendi. Não se preocupe e nem reaja. É tudo o que ela quer que você faça. Deixe por isso mesmo, o tempo é nosso amigo e vai mostrar as coisas no momento oportuno. Vou sair, masconfiante de que você não irá se expor. Qualquer coisa estarei na cantina, certo?

- Claro que você vai para a cantina! Para onde mais? Vai lá, colocar os cadeadinhos do Geraldinho, vai! Capacho!

O silêncio das duas denotava a total indisposição para discussões, mas ao mesmo tempo um sentimento de compaixão imenso por aquela irmão envolvida com pensamentos difíceis e equivocados. Certamente as duas sabiam que poderiam ser vítimas deste tipo de dificuldade a qualquer momento. Ninguém está livre dos envolvimentos do orgulho, do melindre.

Aquela tarde-noite foi tensa e, mesmo a par de tudo, Geraldo mantinha sua necessária concentração para se manter àdisposição para o trabalho mediúnico. Tinha um forte pesar em seu coração, mas nem mesmo por isso deixou de se esforçar para o trabalho. Lembro-se das muitas ocasiões nas quais presenciava situações como estas e que, intimamente, cultivava o desejo de abandonar tudo.

"Para quê, meu Deus? Para quê tanto esforço, se as pessoas não entendem! Aí escutava aquela voz interior que sempre lhe acalmava - 'meu filho, a vida do médium é cheia de espinhos, não desanime: lembre-se de que, se alguns não entendem, todos necessitam, inclusive os que não entendem!'.

O coração de Geraldo dava uma "paradinha" e ele refletia sobre tudo o que tinha para fazer e dos esforços que já tinha feito. Não iria desistir. Naquele momento, em particular, sabia que perdia temporariamente uma amizade. Uma amiga que se afastava por muito pouco, possuída por mágoas e ressentimentos por conta de algo que ele não houvera provocado, mas o tempo a recuperaria, certamente. era só manter a serenidade e seguir em frente com seu trabalho, lembrando das muitas pessoas envolvidas nele e que, ao seu lado, iriam manter o trabalho.

Certamente, somos pequenas fontes de luz, quando nos dispomos efetivamente ao serviço do Amor, mas podemos servir às trevas da ignorância, quando fechamos o coração para o convívio no Bem, através de posturas ligadas ao egoísmo e à vaidade. Ainda assim, seremos sempre assistidos para retomar o caminho da verdade e da vida.

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