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Mensagem
"Não permita que aquilo que você chama de amor se transforme em obsessão.
Amor é liberdade.
Amor é vida.
Jamais prisão ou limitação."
Militão Pacheco
sexta-feira, 22 de junho de 2012
Dogmas
Vamos analisar uma palavra relativamente utilizada em estudos religiosos: dogma. É um pouco longo, mas espero que não incomode e que valha a pena a leitura.
Diga-se antes de tudo que este termo se origina do verbo grego «dokein» (pensar), significando, na verdadeira acepção etimológica: pensamento, doutrina, convicção. Os antigos queriam significar com essa palavra unia firme resolução e uma decisão de autoridade, quer no campo da Ciência, quer no da vida do Estado. Neste Último sentido encontramo-la no bojo da própria Bíblia, como podemos verificar dos seguintes exemplos:
“Se bem parecer ao rei, decrete-se que sejam mortos, e nas próprias mãos dos que executarem a obra eu pesarei deles dez mil talentos de prata que entrem para os tesouros do rei” (Et. 3-9);
“Saiu o decreto, segundo o qual deviam ser mortos os sábios; e buscaram a Daniel e aos seus companheiros, para que fossem mortos.” “Agora, pois, ó rei, sanciona o interdito, e assina a escritura, para que não seja mudada, segundo a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar” (Dn. 2-13 e 6-8);
“Naquele dia foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a população do império para recensear-se” (Lc. 2-1); “Ao passar pelas cidades, entregavam aos irmãos, para que observassem, as decisões tomadas pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém.” “Aos quais Jasom hospedou. Todos estes procedem contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei” (At. 10-4 e 17-7);
“Aboliu na sua carne a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse em si mesmo novo homem, fazendo a paz” (Ef. 2-15);
“Tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz” (Cl. 2-14);
“Pela fé, Moisés, apenas nascido, foi ocultado por seus pais, durante três meses, porque viram que a criança era famosa; também não ficaram amedrontados pelo decreto do rei” (Hb. 11-23).
Ora, com o tempo a palavra foi ganhando sentido mais radical e acabou por traduzir o ponto fundamental e indiscutível duma doutrina religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema.
Acabaria por significar, ainda, o conjunto das doutrinas fundamentais do Cristianismo, segundo proposta dos alexandrinos. Desde o quarto século, paulatinamente tem início a restrição do termo às doutrinas de fé. O dogma, assim, não há de ser palavra tão feia, tal como muita gente pensa. Até que é bastante inocente. Começa entretanto a assustar quando é adjetivada. Por exemplo: o dogma católico (“dogma catholicum”).
Ganha então um significado Inteiramente novo e muito diferente daquele comum, não tanto pelo que exprima, mas pelas premissas que lhe antecedem a decretação. No caso especifico desse dogma temos então “uma verdade religiosa revelada sobrenaturalmente por Deus e, como tal, proposta a crer pela Igreja” (“Teologia Dogmática”, de Bernardo Bartmann, pág. 15 da 1ª edição brasileira).
E enquanto o clero cuidasse apenas de propor realmente dogmas cristãos, extraídos do Evangelho, não seria tanto de se condenar sua atitude, senão apenasmente na parte em que margeia a Razão e interpreta a BoaNova a porta fechadas, a pretexto dum carismo que se arrogou arbitrariamente ou da pretensa assistência privilegiada do Espírito Santo.
Por isso, com esse nome a Igreja passou a propor (antes, impor) uma série de tolices e absurdos, subproduto de concílios solenes e abusivos decretos papais. Vejamos um pouco mais o que o erudito Bernardo Bartmann ensina na sua “Teologia Dogmática”, à página 16 da edição citada:
“Visto que o dogma, tomado em sentido estrito exige a Revelação sobrenatural, segue-se daí que as verdades que a Igreja ensina, não hauridas porém naquela fonte, são dogmas impropriamente ditos.” Note-se que é um respeitável membro do clero que, honestamente, faz a afirmativa, contrariando, de certa forma, o normal comportamento da cúpula eclesiástica. Difícil se torna, contudo, convencê-la, a ela, a Igreja, de quanto se afasta, deliberada ou inocentemente, das fontes da Revelação na maioria, na grande maioria dos seus dogmas.
Confirmemos, de nossa parte, a imprescindibilidade de que o dogma, para ser autêntico, tenha de estar contido na Revelação. Nada há de repugnante, por exemplo, no dogma da existência de Deus. Os espíritas não podem rejeitar essa afirmativa e têm todos, igualmente, convicção dessa Verdade. Os que a não têm deixam automaticamente de ser espíritas, embora sua posição de forma alguma lhe obste a entrada no reino dos céus.
Há dois aspectos, entretanto, que já nesta altura não podem deixar de ser devidamente esclarecidos. O primeiro diz respeito à extensão da Revelação, em face da qual espíritas e católicos discordam. Enquanto estes consideram-na, estranhamente, encerrada com a morte de João Evangelista, o último dos apóstolos, aqueles, considerando as promessas do próprio Cristo, aceitam a sua complementação progressiva. Por isso, às vezes, nós, os espíritas, vamos buscar outros pontos de convicção naquela que é a Terceira Revelação e que, de resto, não contrariou sequer a primeira ou a segunda, mas apenas esclareceu-as melhor.
Lembramos aqui que foi a falsa convicção do farisaísmo nos seus dogmas que encegueceu os seus adeptos e impediu-os de raciocinar sobre as novas e progressivas verdades que Jesus trouxe ao mundo.
No mais, essa história de afirmar (aliás, gratuitamente) que a Revelação se encerrou com o Novo Testamento deixa muito mal o Criador que, nessa hipótese, teria esquecido completamente todos os povos anteriores ao Cristo, permitindo que somente os que nasceram de sua época em diante (desde que se neguem as existências passadas e que o Espírito nasce uma só vez na Terra) viessem a ser premiados com o conhecimento de verdades maiores ou, antes, das verdades definitivas sobre tudo e sobre todos.
A progressividade espírita da Revelação não conspurca assim o Criador, apresentando-O como um Ser realmente Sábio e Perfeito que vai permitindo às Suas criaturas aprender e evoluir, em todas as épocas, à medida que as Verdades Eternas lhes vão sendo reveladas.
Mas, mesmo que se quisesse — apenas para argumentar — raciocinar em torno tão-somente da Revelação Cristã, como a última trazida ao mundo, ainda assim os pontos de vista espíritas afloram muito mais natural e fluentemente do que aqueles que precisam de concílios para ser compreendidos e proclamados. E’ o caso da reencarnação.
O segundo aspecto que prometemos referir, além da extensão da Revelação, é o da aplicação da Razão à própria Revelação. E’ assim que, conforme já frisamos seguidamente, somos racionalistas, enquanto a Igreja faz aditar à Revelação a chamada Tradição (símbolos da fé, concílios, escritos dos padres, etc,) a fim de proclamar os seus dogmas.
Daí a cautela da Santa Madre: “Há limites que a especulação não pode transpor sem perigo para o dogma” (“Teologia Dogmática”, página 113). A Igreja, como já vimos, não admite a aplicação da Razão aos dogmas que ela propõe, esquecida de que, nos concílios, é o puro racionalismo que em última análise orienta os debates e faz gerar as soluções decretadas. E se assim não fora teríamos o caos das idéias no seu mais amplo sentido.
O Espiritismo alia a Razão pura à Revelação, objetivando a proposição dos seus postulados. E como também reconhece alguns limites à especulação, faz assentar o seu exame das Verdades nos fatos que ela encerra, quer direta, quer indiretamente.
É aqui que o Espiritismo se engrandece e torna suas convicções mais sensatas, mais sábias, mais lógicas e menos confutáveis.
Deus existe, dogmatiza a Igreja, porque assim consta da Revelação, porque assim expressa a Tradição e porque assim o magistério “infalível” da Igreja o proclamou.
Deus existe — afirma o Espiritismo — porque assim consta da Revelação, porque assim compreende a nossa Razão e porque assim os fatos o comprovam. “O Espiritismo — sentencia Kardec — não estabelece como princípio absoluto senão o que se acho evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação” (“A Gênese”, pág. 42 da 13ª edição da FEB) – “Que autoridade tem a revelação espírita — diz ainda o Mestre — uma vez que emana de seres de limitadas luzes e não infalíveis? A objeção seria ponderosa, se essa revelação consistisse apenas no ensino dos Espíritos, as deles exclusivamente a devêssemos receber e houvéssemos de aceitá-la de olhos fechados.
Perde, porém, todo valor, desde que o homem concorre para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério, desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos” (“A Gênese”, págs. 44/45, da edição citada).
Quanto à Tradição, é óbvio que o Espiritismo também lhe empresta algum respeito, se considerada no sentido restrito do conjunto das verdades reveladas que os apóstolos pregaram sem as deixar escritas. Repele-a, entretanto, no sentido odioso que lhe empresta a Igreja, quando afirma: “Ao magistério infalível da Igreja cabe discernir, em última instância, quais tradições são de origem divina, quais de origem humana” (“Os Dogmas da Fé”, de João Pedro Junglas, pág. 51 da 3ª edição de “Vozes”) - Ou: “O critério pelo qual se reconhece a bíblia verdadeira, é a tradição apostólica que a Igreja sanciona pelo magistério infalível” (idem, ibidem pág. 51).
Como vemos, há um “magistério infalível” (?!) que julga em última instância o valor da Tradição. Porque a sanção é só e exclusivamente da Igreja? Além do mais, à guisa de apor essa sanção, o clero passou, de repente, não apenas a sancionar os dogmas do Evangelho, mas a fazer também Revelação, autoridade para a qual, nem com muito boa vontade, conseguimos lobrigar na mensagem do Cristo.
É certo que Jesus falou na descida do Espírito Santo, mas apenas para dizer que ele desceu sobre o colégio apostólico a fim de dar força e sabedoria aos pregadores da Boa-Nova e não para que fizesse qualquer Revelação.
E, de fato, a própria Igreja não se considera com essa autoridade, pois “não compôs nenhum livro sagrado, porque não é, inspirada, mas sim interpreta os livros sagrados porque é assistida pelo “Espírito Santo”, como afirma Caussette. Não é mentira que São Bernardo escreveu uma vez que a Igreja, como Esposa do Cristo, tem o Espírito Santo e pode infundir um sentido novo no escrito. Contudo, reconheçamos que, de direito, a Igreja jamais se arrogou esta autoridade e a opinião de São Bernardo permanece uma voz isolada.
Seu procedimento, entretanto, é paradoxalmente outro, pois mais não tem feito, na prática, do que agir conforme diz que não deve agir. Se reconhece que não tem a autoridade para fazer revelação, como pois nos vem inspirar dogmas como o da Santíssima Trindade, da infalibilidade Papal, da Ascensão db Nossa Senhora, do Purgatório, do Pecado Original, etc.? Não foi sem razão que Lutero acusou a Igreja de arrogar-se o poder absolutista sobre a Escritura: “Vangloriam-se de que o Papa e a sua Igreja estão acima da Sagrada Escritura. O Papa teria o poder de mudá-la, suprimi-la, proibi-la, interpretá-la a seu bel-prazer.”
O Espiritismo está pronto a aceitar todas as verdades contidas no Evangelho e, mesmo assim, depois de examinadas racionalmente. Perguntar-se-á, porém: mas, em que termos a Razão de que tanto falamos deverá ser aplicada?
Qual o critério para esse exame? Que, espécie de Razão deverá servil de fiel de balança: a dos Espíritos ou a dos Concílios? Adolfo Bezerra de Menezes, o apóstolo do Espiritismo no Brasil, ensina-nos na sua obra “A Doutrina Espírita como Filosofia Teogônica” (reeditada com o título de “Uma Carta de Bezerra de Menezes”): “Temos um critério infalível para o conhecimento da pura verdade. Temos esse critério nas perfeições infinitas do Criador.
Tudo que as exaltar é pura verdade. Tudo que as rebaixar épura mentira. E, por esse critério, podemos verificar quais os princípios de nossa religião que são verdades, quais os que são mentiras” (págs. 61/62 da 1ª edição da FEB).
O grande equívoco da Igreja não está em apontar dogmas, mas em apontar determinados dogmas que não constam da Revelação ou que são produtos de interpretações distorcidas, distanciadas da grandeza de Deus e capazes de rebaixá-Lo.
É o caso do Inferno, com a crença em Satanás, um ser e uma imagem que, apresentados tão poderosos quanto o próprio Deus, conseguem até desafiá-Lo, diminuindo-O e desmerecendo-O portanto (aqui temos uma falsa interpretação evangélica). Ou, então, no caso da vida única, que minimiza o Criador, apresentando-O injusto com os que não quis gerar perfeitos física, intelectual e moralmente (aqui temos uma afirmativa que não existe na Revelação).
A própria Igreja chama “veritates catholicae” (verdades católicas) àquelas que não estão contidas na Revelação e que, portanto, não podem ser consideradas dogmas. As verdades católicas constituem apenas as “doctrinae ecclesiasticae” (doutrinas eclesiásticas), para distinguir das “doutrinas divinas” da Revelação.
Contudo, a questão se revela facciosa por completo, quando verificamos que, apesar dessa doutrina, a Igreja apresenta como dogma exatamente o que se não acha nas Escrituras, contrariando portanto os seus próprios preceitos que, por isso mesmo, não passam de temas de fancaria.
É o caso flagrante da infalibilidade papal. No mais, a Igreja cuida de defender sua posição de todos os modos, pois mesmo em relação às “verdades católicas” não esqueceu de garanti-las com a característica da infalibilidade. “Os concílios gozaram sempre o prestigio de uma autoridade infalível” — afirma Bernardo Bartmann à pág. 65 da sua “Teologia Dogmática”. Em última análise temos, destarte, a troca dos nomes apenas; os bois são sempre os mesmos.
Segundo o Espiritismo, todos são aptos à interpretação evangélica, desde que os resultados alcançados suportem a crítica da Razão, não repilam o bom-senso universal nem contrariem a verdade experimental dos fatos. E — frisemos bastante — a crítica da Razão (isto é, pela Razão) deve necessariamente engrandecer e exalçar Deus e nunca rebaixá-Lo!
Há ainda um outro ângulo a ser considerado na questão: o texto original da Revelação. O Concílio de Trento estabeleceu “que esta velha e divulgada versão (“vetus et vulgata editio”), provada pelo uso de tantos séculos na Igreja, nas leituras públicas, disputas, pregações, seja considerada como autêntica (“pro authentica habeatur”), e ninguém ouse ou presuma rejeitá-la a qualquer pretexto” (“Enchiridion Symbolorum et Definitionum”, página 785). A respeito, comenta Bartmann no seu trabalho teológico: “O elemento essencial da decisão conciliar deve-se procurar no sentido da palavra “autêntica”.
Em si, não significa conformidade com o texto original da Bíblia, mas reconhecimento da parte da Igreja” (pág. 47, edição citada). Como vemos, a Igreja, além do mais, fechou definitivamente a questão em torno até mesmo do texto bíblico, em relação ao qual não admite nada que se lhe prove contrariamente ao que, da sua parte, já reconheceu como autêntico. Isto já é, queiram ou não queiram, colocar-se realmente acima da própria Revelação!
Dissequemos o problema do dogma com mais profundidade ainda. A teologia dogmática, que já analisamos em parágrafos anteriores, cumpre três deveres distintos: a) apresentar o dogma como é atualmente no ensino da Igreja, extraindo-o das chamadas fontes simbólicas; b) prová-lo com a Escritura e a Tradição; e) aprofundá-lo especulativamente, quanto possível.
Não é difícil verificar que o processo de apresentar, provar e aprofundar é sempre de natureza racional, a despeito da repulsa da Igreja ao sistema racionalista. Mas vamos adiante. Na apresentação do dogma, é recomendada a atenção aos seus próprios escritos.
Na prova são aconselhadas “as normas científicas usadas hoje pela exegese e tantas vezes recomendadas pela Igreja” (“Introduzione allo Studio dei Dogma”, de Glorieux, edição Paulina de 1951). No aprofundamento é recomendada a fé como ponto de partida, além dum ângulo ou crivo filosófico que não seja outro senão o do aristotelismo escolástico, indicado nas encíclicas “Aeterni Patris”, de Leão XIII, de 1879, e “Humani Generis”, de Pio XII, de 1950.
Repare-se que, na hora de “apresentar” o dogma, a grande fonte é sempre o ensino da própria Igreja e os chamados escritos simbólicos, também dessa mesma Igreja. Para isso ela impõe o uso duma linguagem teológica fixa, “pois se cada teólogo quisesse criar um vocabulário próprio, resultaria uma tremenda confusão” (“Enchiridion Symboiorum et Defínitionum”, págs. 159, 161, 442 e seguintes).
Impõe ainda que se evite “a novidade profana de palavras” e, citando Santo Agostinho, obriga o uso “duma regra determinada para que o uso arbitrário dos termos não venha a criar uma opinião errônea sobre o que designam”.
A isto chamam “apresentar o dogma na sua verdadeira realidade”. Como vemos desde logo, é praticamente dogmatizar antes mesmo de apresentar o próprio dogma. Repare-se em seguida que, na hora de “provar” o dogma, só tem valor a exegese católica, o que evidencia uma condição “a priori”, profundamente repugnante.
A prova que não trilhe a norma da ciência católica, não serve nunca. Finalmente, repare-se que a especulação só se permite através duma determinada escola filosófica, qual seja, a do aristotelismo escolástico, o que seria o mesmo se nós, espíritas, propuséssemos: aceitaremos a doutrina católica, desde que nos convençam dos seus postulados através unicamente da escola filosófica dos materialistas ...
Um beco sem saída. Além disso tudo, quando a fé é imposta como princípio diretivo da especulação, poder-se-ia certamente indagar: que fé? A fé cega, sem dúvida, tão sem valor e sem convicção interior. No mais, como seria possível a fé (apesar de cega) numa verdade que ainda vai ser proclamada pela teologia dogmática, depois daquelas três exigências? Afinal, é a Verdade que gera a fé ou a fé que gera a Verdade? Parece que estamos, agora, dentro dum círculo vicioso.
O processo espírita é muito diferente. E, antes de examiná-lo, leiamos rapidamente esse conceito de Léon Denis, contido em “O Problema do Ser, do Destino e da Dor”, à pág. 30 da 8ª edição da FEB:
“Hoje, já não basta crer; quer-se saber. Nenhuma concepção filosófica tem probabilidade de triunfar, se não tiver por base uma demonstração que seja, ao mesmo tempo, lógica, matemática e positiva, e se, além disso, não a coroar uma sanção que satisfaça a todos os nossos instintos de justiça.”
Um pouco antes, à pág. 28, lemos: “O novo espiritualismo dirige-se, pois, conjuntamente, aos sentidos e à inteligência. Experimental, quando estuda os fenômenos que lhe servem de base; racional, quando verifica os ensinamentos que deles derivam, e constitui um instrumento poderoso para a indagação da verdade, pois que pode servir simultaneamente em todos os domínios do conhecimento “ Em nota elucidativa ao pé da pág. 32, afirma: “Os fatos não têm valor sem a razão que os analisa e deles deduz a lei.” “Por conseguinte, o método que se impõe é: 1º) a observação dos fatos; 2º) a sua generalização e a investigação da lei; 3º)a indução racional que, além dos fenômenos fugitivos e mutáveis, percebe a causa permanente que a produz,” Assim — podemos agora repetir com ênfase — o método espírita tem a seu favor, no enunciado da Verdade, esse caminho novo e todo especial, embora muito simplista: a Razão e os Fatos experimentais, depois, obviamente, da Revelação.
Nesse sentido é que o Espiritismo também tem seus dogmas, como aliás bem acentuou o nosso brilhante e estudioso confrade Carlos Imbassahy, no seu excelente trabalho intitulado “Religião”, quando diz, à pág. 156 da edição de 1952, da FEB: “Nem ao dogma, talvez, se fugisse, visto que, para o espiritista, a existência de Deus é ponto fundamental e indiscutível”.
A esse método aliemos ainda o criticismo kantiano no seu aspecto mais extraordinário, do ponto de vista do conhecimento, qual seja o da impossibilidade de se conhecer toda a verdade através da razão. Isto pode parecer paradoxal, mas não o é.
Vamos mais uma vez tentar explicar porquê. Lembremo-nos de que Kant admitiu, como necessário, não apenas Deus, mas também a existência e imortalidade do Espírito, embora não nos fosse possível apreender a essência dessas duas grandes verdades. Ora, não é isto exatamente o que nos ensina o Espiritismo ? Não é isto que consta, como já vimos, de “O Livro dos Espíritos”?
O próprio Kant acabaria sendo considerado paradoxal, se não fosse levada em conta, com bastante inteligência, a sua filosofia. Entre a “Crítica da Razão Pura” e a “Critica da Razão Prática” há um abismo para o estudioso desprevenido.
No primeiro, Kant destrói a metafísica científica “para em seu lugar elevar-se a metafísica da fé. Do cristianismo da razão pura, passa Kant ao dogmatismo moral” (“Noções da História da Filosofia”, do padre Leonel Franca, pág. 178 da 12ª edição da AGIR).
Após a publicação da “Crítica da Razão Pura”, Reinhold disse que a obra foi proclamada pelos dogmatistas como a tentativa dum céptico para abalar e certeza de todo o conhecimento; pelos cépticos, como um trabalho arrogante, presunçoso, visando a erigir nova forma de dogmatismo sobre as ruínas dos sistemas anteriores; pelos supernaturalistas, como um artifício habilmente maquinado para afastar os fundamentos históricos da Religião e estabelecer sem controvérsias o naturalismo; pelos naturalistas como um novo alento à agonizante filosofia da fé; pelos materialistas, como uma confrontação idealista da realidade da matéria; pelos espiritualistas, come uma injustificável confinação da realidade do mundo corpóreo, escondido com o título de domínio de experiência.
Ora, se o kantismo é capaz de ser ao mesmo tempo criticista e dogmático, porque não o pode também o Espiritismo? Considere-se ainda que este além do mais, joga com fatores absolutamente estranhos ao kantismo e que facilita sobremodo e compreensão do aparente paradoxo.
A Doutrina dos Espíritos envolve dois campos do conhecimento: o dos encarnados e o dos desencarnados, provando experimentalmente essa dupla posição da existência e do pensamento das criaturas. Isto facilita muitos problemas. O Espírito desencarnado pode conhecer, muitas vezes, algumas verdades a mais que na condição de encarnado, lhe estariam veladas à sua razão relativa. Aqui ele se sujeita ao criticismo, e do lado oposto da vida, falando-se em tese ele não está mais tão fortemente sujeito a esta condição. Admitido o intercâmbio entre os dois mundos, teremos então atingidas algumas verdades antes incognoscíveis na sua essência.
Voltemos agora ao raciocínio inicial. Por tudo isso, nada há de estranho na afirmativa de Kardec de que o Espiritismo tem alguns dogmas. Trata-se entretanto, de alguns poucos pontos fundamentais da Doutrina, contido. na Revelação Cristã, na Revelação kardecista e em outras, dignas de respeito como é o caso da “Revelação da Revelação”, de Roustaing.
A Razão e a Lógica os sancionam. Os Fatos os comprovam. A universalidade dos estudiosos os atestam. Não há, pois, porque temer a palavra, se encaramo-la do ponto de vista que de fato encerra a sua etimologia: pensamento: convicção doutrina. Nenhum espírita pode negar a Deus. Nenhum espírita pode negar a comunicação entre vivos e mortos. Nenhum espírita pode negar a imortalidade da alma.
São dogmas, porém, concluídos diferentemente da Igreja Católica, por tudo o que vimos expondo até aqui. Não são decretados por uma autoridade humana, por um concilio ou por uma reunião do bispado. Nem tão-pouco são votados por um grupo qualquer que, em assembléia fechada, decide pretensiosamente o que é ou não é verdade. O que se deve temer não é propriamente o termo dogma, mas, antes, o termo dogmática. “A Teologia Dogmática é a fonte por onde se passa do regime de liberdade para o de escravidão” disse com muita propriedade o Padre Alta no seu livro “O Cristianismo do Cristo e dos seus Vigários”, à pág. 814 da edição de 1951 da FEB. Através da dogmática é que surgem até hoje os dogmas mais absurdos da Igreja Católica. Com seu critério dogmático a Santa Madre impõe o Juízo Final, o Inferno, a Santíssima Trindade, a infalibilidade do Papa, e uma série imensa de outras ilogicidades.
Através da dogmática a Igreja manietou a Razão, violentou as consciências e inventou um rosário de dogmas “católicos”. Com eles conspurcou o verdadeiro Cristianismo, enceguecendo-se ante as novas verdades que o Consolador Prometido trouxe à Humanidade e viciando-se na mentira e na simonia. Buscando aflita uma saída para sua incrível e insustentável posição filosófica, agarrou-se a uma moderna “interpretação progressiva” do dogma, preparando o caminho para uma fuga estratégica futura, mas, de qualquer forma, envencilhada num inextricável emaranhado que a esgotará paulatinamente e pouco a pouco lhe exaurirá até as últimas forças.
Este trabalho não deveria terminar aqui. Deveríamos aprofundar alguns dos muitos pontos necessariamente passíveis de maiores esclarecimentos; entretanto, essa tarefa não a comportam as páginas limitadas do “Reformador”. Apenas para rematar, reafirmemos esta breve sinopse de toda e matéria abordada:
1 — O Espiritismo se enquadra no dogmatismo filosófico moderado, por entender que a criatura, em determinadas circunstâncias, pode alcançar a Verdade absoluta. (Leia-se, a propósito, nosso artigo intitulado “Ao Encontro de Deus”, publicado em “Reformador” de Novembro de 1962.)
2 — O Espiritismo repele a teologia dogmática dos católicos por lhe negar os critérios de verdade que adota e o sistema aplicado na proclamação dos seus dogmas.
3 — O Espiritismo possui alguns poucos dogmas extraídos das Revelações Divinas, aceito porém pela Razão, quando esta não minimiza Deus nos Seus juízos e quando são confirmados experimentalmente pelos Fatos.
4 — O Espiritismo admite o criticismo transcendental kantiano, por conceber que há verdades impossíveis de, no estado atual dos encarnados (e às vezes, também dos desencarnados), serem assimiladas tais quais são, pela Razão limitada e relativa das criaturas.
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